segunda-feira, 3 de abril de 2017



Ipsis Litteris


Anna, você está linda; e mãe! Você não sabe o quanto eu fico feliz em saber disso. Acho que podemos ser  amigos.
Grande abraço.

Oi Max, tudo bem?

Tudo bem, Anna!
Fiquei muito impressionado hoje, pois fui para o trabalho pensando em você. Em coisas que conversávamos. Que surpresa a minha, um dos colegas hoje: "Então você conhece a Anna? Sabe que ela é mãe?" Fiquei paralisado, depois muito feliz. Queria muito ver você, mãeanna. Sempre me lembro de uma de nossas conversas sobre filhos.

Você foi pro trabalho pensando em mim? Por quê?

Você é uma das minhas ideias em X.

Eu fico meio intrigada. Já faz mais de vinte anos e volta e meia você aparece dizendo que pensa em mim. Por que isso?


Uma ocasião conversamos e eu disse, insisti, que queria que você me apresentasse a sua família, não sei se você se lembra disso. Fomos à sua casa. 

Sim. Você também conheceu a minha mãe.

E seu pai, no teatro. Foi um encontro no corredor. Já não estávamos mais juntos.

Mas você não respondeu a minha pergunta.

Minha resposta tem relação à sua pergunta é um dos Xs machadianos da minha cabeça. Os outros rapazes conheciam a sua família, mas eu não.

Talvez porque você tivesse namorada e ficasse me dando um pé na bunda num dia pra voltar no outro. E mesmo assim você conheceu.

Naquele momento, eu não estava com ela, que tinha problemas em assumir a relação com um negro.

Então você casou, formou uma família linda, fez sua vida e não entendo por que você volta e meia vem me dizer que ainda pensa em mim. Essa história passou, minhas lembranças não são tão boas quanto as suas, então deixa passar, já foi.

Lembro de você quando leio Machado de Assis, lembro de você quando alguma aluna diz que quer ser bailarina, mas acha que  "não tem mais idade", duas no ano passado. Falei-lhes de você.
Lembro de você,  por dançarmos, rirmos. E por ser uma pessoa sensível e inteligente. Quando eu a conheci, havia parado de dançar; voltei e tenho dificuldade em parar até hoje. O corpo está dando um incentivo para eu esquecer a ideia de uma vez por todas. Há pouco tempo atrás coreografei e dancei Otelo. Foi uma pesquisa interessante.

Lembro que a gente dançava bem junto. Mas também lembro que eu era uma menina e você já era um homem feito, que você me botava para baixo, criticava meu corpo, competia intelectualmente em vez de estabelecer a parceria que eu propunha e que você disse que queria que eu fosse uma neguinha

Eu me lembro das pessoas em um movimento de que a vida não é um queijo suíço, cheia de buracos.

E sim, lembro que o sexo era ótimo, mas isso não segura tudo. Então passou, deixa ir.

Interessante é que sempre te achei intelectualmente superior a mim, inclusive por ter tido uma formação muito melhor. Veja que interessante, era bom sim. Mas não é pelo sexo que me lembro de você. É pela dança, pelo seu humor... Eu não queria que você fosse negrinha, nem poderia querer. Ninguém vira negro, nascemos negros e vamos nos tornando negros no percurso da vida. Nos tornamos por sermos e pela sociedade que nos lembra disso. Acho que não há motivos para não sermos amigos, tenho de você as melhores lembranças. Não me lembro de você pelo sexo, mas sim pela dança, por sua delicadeza, pela poesia. Você é uma pessoa linda, alguém com quem vale a conversa. Como toda bailarina, traz seu poço de angústia, mas, penso que é exatamente esta capacidade de nos angustiarmos que nos faz melhores, não do que os outros, mas do que nós mesmos.
Pensei, muito, nas situações nas quais penso em você, nas linhas acima, nas quais constantemente cito "Brás Cubas". Por que quando a questão são as memórias e a vida, penso em você? O "X" é uma equação, é bom quando se  resolve. Sempre vi você como alguém em divórcio, e a negação da maternidade era parte do que eu via deste divórcio com a vida. Tornava-a um "Capítulo das negativas". 
Eu pensava que era pela dança, pelo sorriso; mas não; era pela vida. Que, junto com as memórias póstumas, traziam-me a lembrança de você, que diz que "era uma menina"; "O menino é o pai do homem", ensina Machado; Rosa, em outras palavras, segue pelo mesmo caminho "Passarinho que se debruça - o voo já está pronto!". As lembranças, nas situações machadianas - de negação, tem relação com o lado mais triste que conheci de você. Sim, eu tenho uma família linda. Agora você também tem, o mais são memórias póstumas.
Seja feliz!