domingo, 22 de março de 2015

Em seu devido lugar

- Nossa, Anna, cada vez que eu te encontro você está mais bonita!
- É que a cada vez que sobrevivo eu volto mais forte.

sábado, 21 de março de 2015

Ninguém nasce mulherão, torna-se


Há alguns anos, um amigo disse que eu era um mulherão difícil de encarar. Fiquei perplexa. Foi a primeira de muitas dispensadas desse gênero que eu iria colecionar a partir dali.

Hoje esse comportamento já não me surpreende: acho graça, tenho preguiça, de vez em quando fico triste. Mas que raios significa esse tal de “mulherão”?

Em primeiro lugar, estou longe de ser uma mulherona. Não sou grande, nem gorda, nem voluptuosa. Em sentido literal, não tenho nada de mais e poderia perfeitamente passar despercebida. Minha beleza se realiza muito mais nos traços do meu caráter do que no aspecto físico (outro dia falo mais sobre isso). Ainda assim, é fato que sou considerada uma mulher muito atraente. Isso torna alguns homens mais tímidos, mas não chega a coibir demonstrações de interesse. Tem quem se jogue, tem quem fique rodeando, mas quem quer se aproximar se aproxima.

Se a coisa não é física, talvez seja intelectual. No entanto, ainda que sejamos mais difíceis de afrontar, não me parece que mulheres inteligentes correspondam a “mulherão” no imaginário do homem médio. Ao contrário, as inteligentes somos nerds, chatas, barangas, histéricas... mas nada a temer. E o mulherão é algo temível.

Um enigma. Fisicamente estou mais para mulherinha e intelectualmente me alinho às feministas “mal-comidas”. No entanto, sempre aparece esse atemorizante, ameaçador, substantivo e masculino mulherão a espantar da minha cama aquele amigo e tantos outros. Acho que é esse o ponto: o que me torna atraente é também o que assusta.

Não sou nem de longe um “mulher fálica”, não estou em disputa de poder com ninguém, mas sou uma mulher visivelmente empoderada. E isso significa bastante coisa: significa que estou confortável no meu corpo, não importa a forma que ele assuma, e que há tempos fiz as pazes com a minha sexualidade. Significa que gosto de sexo e não vejo problema em gostar, que sei muito bem do que meu corpo é capaz e também sei que meu prazer depende essencialmente de mim. Querendo ou não, isso transparece (ou “exala”, como muitos dizem), é o tal do sex appeal. De fato, sou bastante segura e disponível para sexo e amizade. Sexo consensual, com respeito, sem intriga e sem posse. Com amor ou sem amor – mas com humor.

Tomei posse do meu corpo, estou à vontade nele, uso pra me divertir e o resto não era pra ser problema meu. Só que é. Porque a maior parte dos homens corre dessa mulher que eles tanto dizem desejar. Porque o machismo afeta todo mundo, castra mulheres e homens e porque, no caso deles, deve ser muito desgastante viver com a própria masculinidade sempre sob ameaça.
Ninguém nasce mulherão, torna-se. Fica o convite à leitura de Tudo que eu pensei mas não falei na noite passada pra ver como tudo isso foi construído. 

Não foi fácil. Ainda não é. Mas é bem gostoso.


sexta-feira, 20 de março de 2015

Corpo: espírito e nervos

Há alguns anos decidi escrever sobre sexo. Não lembro se o primeiro impulso era registrar uma explosão de libido, compreender essa enorme potência ou ganhar um dinheirinho escrevendo sacanagem barata por aí. Acho que a última alternativa. Ainda não tinha superado a falta de confiança nas minhas capacidades que todas as mulheres aprendemos a ter. Ainda não superei completamente.
Então fui ler toda literatura erótica/pornográfica que pude alcançar. E fiquei entediada, nossa! Minha impressão era que, mesmo quando a literatura se propunha a falar de sexo, o sexo sempre ficava por último. Ora por baixo de lençóis de seda e luzes macias, ora como resultado de conquista, engodo, brutalidade; ficava em segundo plano diante do fetiche ou resignado à sua insignificância perante uma grande transgressão.
Tudo vinha antes do sexo. E quando chegava a hora que realmente me interessava – encontro entre corpos, calor, cheiro, fluidos... – meia dúzia de palavras e fim.
Os expedientes do fidalgo a fim de deflorar a criada, o orgasmo performático da modelo que não sabe o que é o clitóris cavalgando uma sela no ateliê do pintor, o marido que trai a esposa com a cunhada, grandes orgias de sexo mais uivado que vivido, adoração por botas de couro e mil outras variações que sempre giravam em torno de sedução, transgressão, fetiche, violência e logro. Sexo que é bom, quase nada.
Na verdade, o sexo que eu encontrava na literatura não me parecia nem muito bom, nem muito sexo. Faltava fluência, alegria, humor, curiosidade, confiança e, principalmente, corpo. Decidi que era necessário afirmar esse ponto de vista: apenas espírito e nervos. Agora você me conta se a obra realizou a ideia. Ou se o espírito da coisa ganhou corpo. Começa assim:

A MULHER QUE EU ME TORNEI

A mulher que eu me tornei sabe que o orgasmo é dela, e por isso o oferece facilmente. A mulher que eu me tornei é atraente: fora do quarto e da casa, também existe sexualmente. A mulher que eu me tornei ama sem amo, goza e não usa, dá e não cede. Toda a sua dimensão tem tesão. Não esquenta no fogão e nem esfria na pia: ela é antimonogamia. Não é anódina ou mofina, nem pesada e nem franzina – a mulher que eu me tornei é bailarina. A mulher que eu me tornei tem uma existência criativa, a mulher que eu me tornei goza com a vida. Se exibe de calcinha, cavalga o homem olhando, fala imundícies, trepa sorrindo, goza gritando. A mulher que eu me tornei goza só imaginando. A mulher que eu me tornei goza chupando...

quarta-feira, 18 de março de 2015

Uma mulher como as outras

Outro dia um amigo por quem tenho um grande carinho disse que não sou deste mundo. Sempre guardo imenso carinho pelos homens com quem tive momentos intensos na cama e que souberam transformar isso em respeito e amizade (e não em perseguição, hostilidade, medo ou desprezo – mas isso é assunto para outro dia). Ele disse que sou criativa no sexo  o  que é um grande elogio, mesmo. Mas a fala dele também tinha uma pontinha de julgamento sobre a “frieza” das outras mulheres. Isso sempre me incomoda na fala de alguns homens, tanto os que me conheceram quanto os que apenas leram o que escrevi.
Moços, foi bem legal ter me tornado inesquecível pra alguns e não é ruim participar das fantasias de outros, mas é nas mulheres que estou interessada. É a elas que eu me dirijo aqui, é pensando nelas que escrevo. 
Homens são bem-vindos, mas como sujeitos da empatia com os enormes desafios de ser sexualmente feliz pertencendo ao outro gênero. Traduzindo, se querem saber mais sobre as mulheres através das minhas palavras, sejam bem-vindos. Mas não me coloquem em competição com a minha classe porque meu ponto de vista é o da sororidade (o programa pede para trocar por “sonoridade”!; caro corretor automático, sororidade é o equivalente feminino da fraternidade masculina).
Então é isso. Não sou uma máquina de sexo abençoada por deus com um gozo poliastronômico. Gozar chupando, tocando, beijando, até mesmo só pensando, é resultado de muito, muito trabalho; muita, muita leitura; muita luta libertária e antimachista (antifascista também, querido corretor). 
E eu não fui sempre assim, ao contrário! Mas essa história toda eu conto no meu livro. O livro, se você ainda não leu, é sobre isso. E o que eu desejo, mesmo, é que todas as mulheres cheguem lá, nesse sexo feliz e polimórfico. O mundo, então, poderia ser bem mais gostoso, mais igualitário, menos opressivo.
Mas para isso é preciso reivindicar a posse do próprio corpo, empoderar-se (caro corretor: empoderar-se é o contrário de moderar-se), passar por maluca... Sem o apoio de outras mulheres é impossível. Eu estou aqui para apoiar quem quiser vir comigo e conquistar o apoio de quem já passou por isso.


Meu nome é Anna P. Sou uma mulher como as outras.

segunda-feira, 9 de março de 2015

O que uma mulher leva para a cama?


Sexo ainda é um assunto tabu. Mas não esse sexozinho misógino da indústria pornô clichê. Esse atrapalha bastante a vida sexual de homens e mulheres, principalmente adolescentes, com suas mentiras plastificadas sobre corpo e sexualidade, mas não é tabu. É produto de livre circulação, consumido em larga escala. Quando muito, pode ser tabu para algumas religiões.

Agora, se você quiser testar no mundo uma coisa muito mais ofensiva do que sexo e muito mais herética que o ateísmo, experimente abrir sua pequena boca para falar sobre liberdade sexual feminina. Chuva de pedras, Madalena!

Pois é, o tabu é a sexualidade feminina. Mulher gostando, sabe? Por incrível que pareça. Ou não tão incrível, pra quem tem consciência da violência que sofre. E se nenhuma pessoa vai pra cama sozinha, imagine o que  leva pra cama uma mulher!

Uma mulher média sofre uma pesada repressão física e sexual desde bem pequena. Quando nasce, tem suas orelhas furadas e carrega incômodos lacinhos na cabeça, usa vestidos desconfortáveis que logo vão lhe impedir de agachar ou sentar com as pernas abertas porque “você já é uma mocinha, não pode ficar mostrando a calcinha por aí”. Depois ela vai aprender que os meninos têm pinto ou pipi, dos quais se orgulham muito e que são nomes tranquilos de dizer, enquanto ela... “Menina, tira a mão daí!”. Xoxota, xaninha, periquita, pepeca... alguém conhece um único nome pra buceta que não venha carregado de constrangimento?

Uma mulher média na adolescência já aprendeu a não se masturbar, a ter vergonha dos seios, a nunca ficar à vontade corporalmente, a temer os homens − que são seres superiores, ainda que sejam menos capazes de se controlar sexualmente do que gorilas. Aprendeu que seu único atributo de real valor é a beleza e, portanto, que é feia demais, ou gorda demais, ou velha demais etc. Que homens e mulheres não são iguais: homens são demais e mulheres são de menos.

Todos os dias, uma mulher média sente medo de ser atacada pelo homem médio. A mulher média já sentiu mais de uma vez um grande pavor com assédio de rua, ameaças de parceiros, violência doméstica, no trabalho etc. Uma mulher média já foi assediada e/ou molestada e/ou violentada. E aprendeu que a culpa é dela.

É isso que uma mulher média leva pra cama. E é obviamente por isso que sexo consensual, leve, relaxado, criativo e muito prazeroso é difícil pra caramba.

De novo, a boa notícia é que não é impossível. Mas precisa de muita coragem, muito enfrentamento, muita informação, muito apoio das amigas... muita política. É aí que entra o feminismo: a ideia radical de que as mulheres são gente, de que nosso corpo nos pertence, essas coisas tão básicas mas tão distantes da nossa vida média.

Eu sou a Anna P., uma mulher média. O feminismo salvou minha vida. E transformou radicalmente minha sexualidade. 

Muito prazer.